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O jornalismo, como todas as instituições, possui um discurso sócia, isto é, um conjunto de falas, locuções e textos que postulam ou reafirmam uma visão de mundo. Este discurso visa dar legitimidade social ao jornalismo. Ele promove o engajamento existencial, oferecendo motivações e razões de ser, hierarquizando valores e justificando vocações. Assim, atinge antes de tudo o próprio campo social, seus agentes, instituições e mentalidade, cimentando a identidade do grupo. Além disso, este discurso comporta uma função direcionada a Sociedade em geral, com o objetivo de produzir no corpo desta as mesmas convicções internas do campo que o origina, mas visando autolegitimação social. Isto significa que o discurso de autolegitimação do jornalismo, além de refletir a identidade da corporação, visa convencer a todos de que esta Instituição é necessária para toda a sociedade.
A fundamentação discursiva da própria legitimidade social se realiza em termos da função prática da Instituição. Deste modo, uma corporação será tanto mais legítima quanto maior for o número de membros da sociedade percebidos como dependentes dela. Além disso, a legitimidade se fundamenta com base no horizonte de valores socialmente reconhecidos. Aqui, supera-se a mera função prática e atenta-se para o fato de que essa função tem valor moral e nobre. Neste caso, a discussão não apenas justifica a sua excelência moral pelo quadro dado de valores, mas provê a adesão social para os valores que são condições para a justificação da sua nobreza moral.
Ao se indagar “para que serve o jornalismo”, a resposta mais provável incidir sobre o tema do interesse público. Esta reposta ressalta que mais que uma função social, o serviço ao interesse público é valor eminente e o principio que o prescreve torna-se uma determinação moral.
O discurso de autolegitimação do jornalismo é hábil em empregar o interesse público como principio maior de sua deontologia, de modo que nos casos em que valores morais entram em conflito, o jornalista deve obedecer àquele valor que se relacionar diretamente a satisfação do interesse público, de modo que os eminentes valores associados ao jornalismo como liberdade de expressão, de opinião etc, ganham sentido por sua vinculação discursiva ao horizonte do interesse público.
Porque ainda usar esse discurso, o mesmo a 200 anos, se a realidade mudou?
Bem, a resposta se inicia no éculo XVIII quando a burguesia estabelece instituições políticas e econômicas que se contrapunham ao status quo. Os burgueses foram buscar na democracia, uma experiência clássica, um modelo institucional de decisão política, oposto ao padrão aristocrático. Neste modelo, a decisão legítima passa pela opinião pública, pela esfera civil, e demanda que a publicidade seja normal ao Estado. Um dos instrumentos fundamentais para a manifestação e formação da opinião pública foi a imprensa. Esta nasceu burguesa, portanto, em polêmica contra o Estado e a favor da esfera civil. Nasce iluminista, convencida dos valores representados pela argumentação, pelo debate público e pela racionalidade; e nasce liberal, portanto, ciosa de sua autonomia em face do Estado ou dos poderes e convicta de que a liberdade de expressão, opinião e imprensa são instrumentos fundamentais para um modelo de sociedade baseado na autodeterminação dos sujeitos.
Mesmo tendo o contexto histórico-social mudado em 200 anos, o jornalismo continua a manter o seu discurso de autolegitimação inalterado. Neste ínterim houve mudanças estruturais, no que tange ao Estado (agora burguês), à esfera civil, à deliberação pública, à opinião pública. O jornalismo também mudou, passando a ser uma imprensa empresarial, entendida como um sistema industrial de serviços voltados a prover o mercado de informações. Entretanto, inferir que o discurso de autolegitimação seria puramente ideológico seria pura, mero artifício de psicologia social pó ser tão simples quanto errôneo. Antes de tudo porque não há sistema político em que as esferas da decisão política e a esfera civil se encontrem perfeitamente harmonizadas. Além disso, a democracia contemporânea se reinventa na forma de “democracia eleitoral”.
Neste quadro, a impotência da esfera civil, dispensada de funcionar como uma esfera pública, converte-se em uma potência, pelo fato de ser a instância de autorização dos agentes para o exercício das funções de Estado através de eleições e plebiscitos. Assim, dá-se no campo da política o fenômeno da “eleição interminável”. Desta forma, o jornalismo pode servir à Esfera Civil disponibilizando os repertórios de informações, os estoques cognitivos de que a cidadania necessita para tomar posição nos campeonatos eleitorais. Há, portanto, funções para a democracia, mesmo reduzida À democracia eleitoral, que só um jornalismo comprometido com a idéia de interesse público é capaz de cumprir.
Por outro lado, o serviço ao interesse público não pode ser um princípio absoluto da prática jornalística. Por muitas razões. A primeira delas se prende ao fato empírico de que o interesse público não parece ser capaz de fundamentar moralmente toda a atividade jornalística contemporânea, pois grande parte da informação política oferecida destina-se a propósitos distantes dos interesses da prática de cidadania política.
Teríamos apenas duas alternativas para resolver esses impasse. A primeira consistiria em escolher o interesse público como demarcador da identidade do campo e excluir do jornalismo tudo aquilo que não tivesse um vínculo direto com este propósito. Mas isso não é nem possível nem desejável. Uma segunda alternativa consiste em compreender a noção de interesse público num sentido bastante lato , incluindo tudo o que direta ou indiretamente aparelhasse o individuo para a vida social. Essa alternativa é inaceitável pois enfraqueceria o discurso de autolegitimação deixando frouxo e pouco útil.
O discurso de autolegitimação do jornalismo começa a realizar uma reconversão dos sentidos,não parte do dado de realidade – o jornalismo empresarial, mas consiste em modificar o sentido das palavras: o jornalismo manter-se-ia a serviço do interesse público, mas o “público” teria o seu sentido modificado para audiência. Mas, o serviço ao público-audiência está longe de poder ser admitindo como um principio de ética do jornalismo.
Deve-se perceber que não mais existe um principio único e absoluto a orientar o jornalismo, mas o principio do bem público deve continuar norteando o jornalismo voltado para a cidadania.
Uma alternativa à idéia do principio absoluto deve consistir em dois movimentos. O primeiro consiste em encontrar valores que sejam coextensivos com um conceito aceitável de jornalismo. Um outro, seria admitir o jornalismo como uma atividade voltada para a produção e oferta de notícias. O jornalismo possui um tremendo potencial de poder, pois pode fazer conhecer ou ocultar, enganar ou revelar, fazer preferir, fazer pensar, sentir. Por isso o pacto da mediação cobra do jornalismo obrigações proporcionais à sua importância.
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